Chegaste a esta cidade como todos os outros verdes caloiros, tentaste em vão esconder o receio das praxes, do desconhecido, dos desconhecidos que te acolhiam, da sensação de a partir daí teres que contar apenas contigo, de a partir daí teres de ser auto-suficiente, de teres de te bastar. O receio da sensação de teres deixado o ninho e do teu voo ser sustentado, pela primeira vez, pelas tuas próprias asas, que te pareciam ainda frágeis. E os que te acolhiam, de capas negras aos ombros, conheciam-te, conheciam-se, viram estampado no teu rosto o seu próprio rosto quando um dia, que a memória preserva intacto, chegaram a esta cidade.
Mas o tempo foi passando, tu cresceste, apreendeste, riste-te, choraste, embriagaste-te em noites de boémia, estudaste, entregaste-te à liberdade, e aprendeste a medi-la quando te pareceu desmedida. E hoje, que o teu ano de caloiro já lá vai, e que esse “tu” tanto cresceu por dentro, usas a espaços o teu traje que confirma isso mesmo, e que te acompanhou e te acompanhará em noites que não esquecerás.
Ainda te lembras? Claro que sim... claro que te lembras, como te poderias esquecer?... Estava a chegar a altura. Já se falava nisso. Alguns dos teus colegas já o tinham, os padrinhos e madrinhas avisaram-nos de que era melhor comprar o traje, porque mais uns dias e estariam naquele pequeno quiosque que era a Toga, todos os caloiros de todas as faculdades para comprar o seu, para serem pastranos vestidos a rigor na Serenata Monumental, para os padrinhos que os tinham acolhido lhes traçarem a capa e dessa forma os reconhecerem como um “quase quase dr.”.
Mas o mês estava a correr mal financeiramente, os teus pais disseram-te que “a fatiota era cara” e o ano nem estava a correr nada bem (a raposa espreitava-te pelo canto do olho), e que ainda nem sabiam se não ias voltar para casa antes mesmo do ano terminar. E em ti renasceu o puto, querias o traje, querias… tinhas de o ter. Raios partam! Até porque mesmo antes de o comprares já era teu de direito, um ano inteiro a ser praxado! E agora… não havia traje?... Nem que caísse o Carmo e a Trindade. Ouvias toda a gente dizer que o ia comprar amanhã, que o tinha comprado ontem, e cada vez que ouviste falar dele como o desejaste… Lembras-te? Já te corria no sangue a praxe académica. Já tinhas no coração os amigos com quem tinhas feito esse duro primeiro ano e que querias ver trajados, e que querias que te vissem trajado. E sem traje, o que traçariam os teus padrinhos que te ensinaram os caminhos que até aqui tinhas percorrido? Que pastrano serias tu depois da meia-noite sem traje (perguntavas-te)?…
A tua persistência foi maior… Venceste. Nem podia ser de outra maneira. Querias fazer parte da Academia de Coimbra. Querias ser um dos seus símbolos, querias à viva força ser um capa negra, um estudante desta velha academia cujo prestígio é por todos reconhecido, e cujo brio te enaltece.
Entraste então no pequeno quiosque como uma peça em linha de montagem, era a tua vez, serias ali modificado, melhorado a teu ver, parecia-te que tinhas esperado tanto tempo por isso… A senhora que te tirava medidas rapidamente, ignorava por completo a satisfação com que ali estavas, como estavas expectante… Depois da fita métrica te ter contornado o corpo por três vezes num ápice, pois mãos profissionais têm outra velocidade, deste a mando da costureira mais dois pequenos passos. Sabias o que se seguia, tinhas estado a olhar atentamente para o caloiro que estava à tua frente. Uma outra senhora atirou-te para os braços um par de calças negras, uma camisa branca, um colete (peça de vestuário que nunca tinhas usado), uma gravata, uma batina (peça de roupa que já tinha ouvido falar no ano que tinha passado, mas que na verdade não sabias o que era), e depois… no final, quando a roupa que te deram para vestires te assentou como uma luva, puseram-te em frente a um espelho, e colocaste a tua capa aos ombros. Essa seria a tua capa… Como gostaste de te ver com a tua capa.
A senhora, ao passar por ti, naquele espaço exíguo, enquanto atendia freneticamente mais dois clientes mandou-te um piropo barato que te caiu no goto, e esboçaste um discreto sorriso, muito mais pequeno do que o que te ia na alma. E a outra senhora, que te tinha dado a roupa para a mão, inoportunamente estragou-te o momento sublime de auto-contemplação, e tirou-te o doce da boca ao pedir-te para entrares no minúsculo vestiário e tirares o traje.
Quando chegaste a casa vestiste-o de novo, olhaste de novo o espelho que nesse dia te dava uma das melhores imagens que tinhas de ti. Alinhavas a gravata, ajeitavas o colete, e quando tiveste coragem despiste-o de novo.
Não tardou muito até que o vestisses novamente, ainda antes da Serenata. Levaste-o contigo para a tua casa, num saco especial da Toga, o traje imaculado, ainda a cheirar a novo, e mostras-te à tua família como te ficava a capa que te estava destinada. A tua mãe deixou cair uma lágrima, o teu pai olhava para ti com orgulho extremo, e a máquina fotográfica registou o momento.
Eras um estudante de Coimbra! Pertencias à velha academia coimbrã, chegaste, viste e venceste na cidade dos estudantes, e foste por eles reconhecido como dr.
A Academia de Coimbra concedeu-te as amizades que fizeste, o traje académico, proporcionou-te a possibilidade de teres a melhor vida de estudante do Ensino Superior. E ser estudante em Coimbra, confirmaste por experiência própria, é inexplicável e inesquecível.
Mas já não te preocupas com a Academia que tanto de deu. Hoje demarcas-te, distancias-te dela. Não deixas que ela conte contigo, não participas nela, abstraíste-te, é-te indiferente se a Associação Académica de Coimbra luta ainda hoje por alguma coisa, se nas Assembleias Magnas participam os seus capas negras, se a Academia tem força, se a Academia tem o vigor de outrora, se tem o brio de outrora, se tem os intelectos de outrora. É-te indiferente se te fazes representar na Associação que te representa. E perante tanta indiferença meu Caro Colega, desculpa que te diga… Mas o Capa Negra Vai Nu.
Cordiais Cumprimentos
Hilário